segunda-feira, 12 de março de 2012

TEXTO 3: DIREITO DO CONSUMIDOR I – MATUTINO (UFMS) PROFª PATRICIA MARA – LEITURA RECOMENDADA

A EVOLUÇÃO DA DEFESA DO CONSUMIDOR ANTES DA LEI 8.078/90

Como em qualquer outro país, as relações de consumo no Brasil estiveram intimamente ligadas ao desenvolvimento econômico, razão pela qual sempre houve também a preocupação do legislador em disciplinar esta matéria que abarca, sem dúvida, uma questão relevante para ordem social.
Ao analisar o processo legislativo dirigido à matéria de consumo, percebemos que o legislador pátrio seguiu o mesmo ritmo do processo econômico, o qual acelerou-se consideravelmente nas três últimas décadas, fazendo emergir grande número de situações jurídicas novas no campo do direito privado, onde princípios individualistas predominavam sem atender eficazmente os problemas de cunho social que continuavam a reclamar soluções.
Não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, este fenômeno ganhou destaque a partir do século XVIII com o advento da Revolução Industrial, quando surgiu um conjunto de leis disciplinadoras de variadas situações relacionadas às relações de consumo, mas os nossos legisladores pátrios não seguiram a tendência dos países do primeiro mundo, que preferiram não codificar a matéria.
Ninguém se atreve a afirmar, com segurança, quando e onde o direito do consumidor teve origem, pois, como afirma Eduardo Gabriel Saad[1], “Desde os tempos mais recuados, sempre houve alguém que vendesse algo (ou trocasse um por outro produto) e alguém que comprasse aquilo de que necessitava para alimentar-se ou para proteger-se contra as intempéries.”
Segundo ainda observa este autor[2] “Sabe-se que, mesmo em tempo mais recuados, o consumidor – quando prejudicado pelo vendedor de um produto – contava com a proteção do Estado. As normas legais sobre o assunto, nos primeiros séculos da era cristã, variavam de país para país, mas a proteção ao consumidor existia, sempre em moldes individualistas, à vista do tipo de sociedade de então.”
Certamente o caráter individualista que revestia as relações de consumo se devia ao fato de que, até então, a produção era artesanal e de pequena monta.
Desde as Ordenações Filipinas já havia normas de proteção das operações mercantis que, em conseqüência, tutelavam também os interesses dos consumidores, a exemplo dos textos encontrados no Livro V, Títulos LVII e LVIII, os quais condenavam à morte aquele que falsificasse ou adulterasse medida ou peso de mercadoria.
Após este período de visível rigorismo, e apesar do crescimento econômico do Brasil, as relações de consumo continuaram a ser tratadas desordenadamente por meio de normas esparsas, como veremos a seguir.
Com a Revolução Industrial, foram sendo feitas grandes descobertas que levaram à produção em larga escala, influenciando significativamente no direito comercial e civil, como se observa pelo texto do artigo 159, do Código Civil de 1916, que dispunha o seguinte: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, artigos 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553”[3].
Ocorre que a responsabilidade subjetiva do fornecedor geralmente era impossível de ser provada, tanto pela natural dificuldade que o consumidor tinha em atender o referido ônus probatório, como pelo lento e dispendioso processo que, não raras vezes, resultava infrutífero e não se prestava a recuperar eventuais danos.
Ao Decreto 22.626, de 07 de abril de 1933, ou Lei de Usura, também pode ser atribuída a natureza de norma protetora do direito consumerista, na medida em que veio limitar as taxas de juros contratuais, evitando, assim, o cometimento de excessos numa relação de consumo.
Com a evolução da idéia de desenvolvimento econômico como fator de crescimento social, observamos o fenômeno da produção em larga escala, de onde decorreram outros que interferiram enormemente nas relações de consumo, como o surgimento de intermediários entre os fabricantes e o consumidor, o que agravou ainda mais as dificuldades deste último ver-se indenizado.
Então, editou-se a Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que passou a punir com sanções pecuniárias e detenção de 6 meses a 2 anos, aquele que cometesse crimes contra a economia popular, assim permanecendo mesmo com o advento do Código de Defesa do Consumidor.
Esta lei até poderia facilitar a função fiscal do Estado, mas, por outro lado, não resolveu o problema da reparação dos danos causados ao consumidor, porquanto ainda era necessário se demonstrar a responsabilidade, ou seja, a culpa do causador do dano.
Como o crescimento industrial e comercial deu origem a novos métodos de publicidade e de venda, houve uma ampliação do mercado de consumo que, inevitavelmente, assumiu um corpo coletivo dominado pela pluralidade de interesses da mesma natureza, e para os quais o sistema jurídico não oferecia meios de defesa eficazes.
Com efeito, sob o ponto de vista do consumidor individual, o prejuízo causado pelos produtos colocados em massa no mercado, com algum vício de qualidade ou quantidade, não demandava grande preocupação do legislador, ao mesmo tempo em que desestimulava o prejudicado a propor demandas judiciais lentas e desgastantes, apesar do enorme lucro que isso poderia representar para o fornecedor.
Percebemos o desinteresse em submeter isoladamente ao judiciário os pequenos conflitos das relações de consumo, posto que serviria apenas para sobrecarregar a máquina estatal, além de demandar gastos e perda de tempo sem solução para um problema que, invariavelmente, atingia o interesse de toda uma coletividade.
Em 1962, surgiu a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro, autorizando a União a intervir no domínio econômico para garantir a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo, este, visto inclusive na qualidade de consumidor.
No mês de setembro deste mesmo ano, editou-se a Lei 4.137, ou Lei do Crime do Colarinho Branco, para reprimir abusos do poder econômico.
No âmbito Constitucional, o direito do consumidor também precisava evoluir, isto porque, até a Constituição de 1967, através da Emenda nº 1/69, referia-se exclusivamente a direito subjetivo individual, não havendo, ainda, qualquer menção acerca dos interesses da coletividade.
Contudo, quando a Carta Constitucional de 1969, em seu art. 8o, XVII, “d”, c/c parágrafo único, atribuiu à União, aos Estados e aos Municípios competência concorrente para legislar sobre a produção e o consumo, interpretamos extensivamente tal norma, concluindo que a expressão “consumo” abrangeria a competência para editar leis de proteção do consumidor.
Em 20 de janeiro de 1969, foi editado o Decreto-Lei nº 422, para alterar a já citada Lei Delegada nº 4 e atribuir competência para a Superintendência Nacional do Abastecimento – SUNAB – fixar preços máximos de taxas, anuidades de estabelecimentos de ensino, ingressos em diversões públicas populares, inclusive cinemas, bem como aplicação de qualquer forma de intervenção prevista até então (art. 7o).
É igualmente digna de nota a criação do Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária – CONAR – uma associação entre anunciantes, agências de propagandas e veículos de comunicação, destinada a regulamentar as relações de consumo de acordo com a ética publicitária e regras de comportamento previstas expressamente num código criado pela própria associação, denominado Código CONAR, dentre as quais merecem destaque as seguintes:
Art. 19 – Toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais e ao núcleo familiar;
Art. 20 – Nenhum anúncio deve favorecer ou estimular qualquer espécie de ofensa ou discriminação racial, social, política religiosa ou de nacionalidade;
Art. 25 – Os anúncios não devem explorar qualquer tipo de superstição;
Art. 26 – Os anúncios não devem conter nada que possa conduzir à violência;
Art. 27 – O anúncio deve conter uma apresentação verdadeira do produto oferecido, conforme disposto nos artigos seguintes desta seção, onde estão enumerados alguns aspectos que merecem especial atenção;
§ 1o Descrições – No anúncio, todas as descrições, alegações e comparações que se relacionarem com fatos ou dados objetivos devem ser comprobatórios, cabendo aos anunciantes e agências fornecerem as comprovações, quando solicitadas.
Tais normas deixam evidente a preocupação desta associação em proteger uma sociedade impotente frente aos possíveis abusos cometidos nas relações de consumo, por meio de publicidades ofensivas, o que também se confirma pelas diretrizes adotadas sobre bebidas alcoólicas, que prescrevem:
Crianças não devem figurar nos anúncios, a não ser em situações que tornem natural e espontânea a sua presença, como é o caso das cenas de família e contanto que fique bem claro que não estão bebendo e, ainda, quando sua presença for necessária para enfatizar temperança e moderação; os anúncios não deverão ser endereçados a menores de idade nem tampouco encorajá-los a beber; qualquer pessoa que apareça bebendo, em um anúncio, deverá ser e parecer maior de idade.
No âmbito estadual, São Paulo foi pioneiro na criação do primeiro Procon, órgão executivo cujas atribuições ficaram bem definidas na Lei-Estadual nº 1.903, de 29/12/1978, esta posteriormente alterada pela Lei-Estadual nº 9.192, de 23.11.95, para transformar aquele órgão em fundação de direito público.
Em abril de 1985, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Resolução nº 39/248, por meio da qual prescreveu normas eficazes que atendessem necessidades básicas como a proteção contra riscos à saúde e segurança; promoção e proteção dos interesses econômicos; acesso à informação adequada que permita a escolha acertada; a educação; a liberdade de associar-se para defender seus interesses.
Segundo orientação de Míriam Regina de Carvalho[4] “Com base nessa resolução da ONU, os principais direitos dos consumidores seriam: o direito ao consumo (acesso a bens e serviços básicos); o direito à segurança, ou seja, a garantia contra produtos ou serviços que possam ser nocivos à vida ou à saúde; o direito à escolha (opção entre vários produtos e serviços com qualidade satisfatória e preços competitivos); o direito a informação (conhecimento dos dados indispensáveis sobre produtos e serviços para uma decisão consciente); o direito a serem ouvidos, no planejamento e execução de políticas econômicas; o direito à indenização ou reparação financeira por danos causados por produtos e serviços; o direito à educação para o consumo, ou seja, para o exercício consciente de sua função no mercado; o direito a um meio ambiente saudável, ou seja, ter o equilíbrio ecológico defendido para melhorar a qualidade de vida presente e preservá-la para o futuro.”
Entretanto, foi somente em julho de 1985 que se registrou, pela primeira vez, uma norma escrita dirigida especificamente para as relações de consumo, quando se criou o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor – CNDC – órgão Federal com atribuição de estudar e apresentar propostas de medidas de proteção dos consumidores, composto por grandes juristas brasileiros, entre os quais encontravam-se, inclusive, aqueles que mais tarde vieram a fazer parte da comissão de estudo do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor.
Ainda assim persistia a indisfarçável necessidade de se buscar instrumentos práticos e eficazes para a proteção dos interesses que eram comuns para toda a sociedade pela identidade de matéria, e passivos, por isso, de uma ação conjunta que poderia solucionar, de uma só vez, a pretensão de todos os lesados nas relações de consumo.
Em 24 de julho de 1985, editou-se no Brasil a Lei 7.347, disciplinadora da ação civil pública, a princípio para apurar a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Este foi o primeiro momento em que se registrou, na legislação brasileira, uma tutela tão ampla de interesses que sempre refletiram diretamente sobre toda a coletividade e, por isso, igualmente indispensáveis para a manutenção da paz social.
Os interesses individuais, que até o momento eram a única espécie tutelada pelo direito, não passavam da esfera de cada indivíduo lesado, como o próprio nome sugere, e, por isso, as normas protetivas existentes eram muito limitadas quando se falava em um dano de grande proporção.
Ao referir-se a interesses coletivos, a Lei da Ação Civil Pública veio justamente suprir aquela limitação encontrada no ordenamento jurídico de antes, fornecendo o instrumento efetivo que estava faltando e que a sociedade tanto ansiava para ter a tutela de interesses que diziam respeito a um grupo ou classe de pessoas determinadas ou, pelo menos, determináveis.
Além dos interesses coletivos, a Lei da Ação Civil Pública referiu-se a interesses difusos, passando a cuidar daqueles interesses caracterizados pela indivisibilidade do seu objeto, como bem exemplifica Hugo Nigro Mazzilli[5], ao afirmar:
[...] a pretensão ao meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pessoas, não pode ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade; também o produto da eventual indenização obtida em razão da degradação ambiental não pode ser repartido entre os integrantes do grupo lesado, não apenas porque cada um dos lesados não pode ser individualmente determinado, mas porque o próprio interesse è indivisível. Destarte, estão incluídos no grupo lesado não só os atuais moradores da região atingida, como também os futuros moradores do local; não as pessoas que ali vivem atualmente, mas até mesmo as gerações futuras, que, não raro, também suportarão os efeitos da degradação ambiental. Em si mesmo, o próprio interesse em jogo é indivisível.
A partir de então, com o vultuoso crescimento de questões de natureza exclusivamente consumeristas, não havia mais como fugir da realidade social, que reclamava do Estado um trato especial para as relações de consumo, dada a deficiência do sistema, que exigia uma estrutura normativa e instrumental.
Em resposta a este clamor da sociedade, em 1988 o legislador constituinte cuidou do tema na própria Carta Magna, constitucionalizando a defesa do consumidor nos artigos 5o, XXXII e 170, V, dentre outros.
Fonte: Parte integrante de monografia apresentada por Patricia Mara da Silva e Maria Aparecida Franco Papi no curso de pós-graduação em Direito Administrativo com ênfase em gestão pública, no Centro Universitário de Campo Grande com tema: “Os instrumentos de Defesa do Consumidor e a sua importância na Consolidação do Código de Defesa do Consumidor”. Profª Orientadora Rejane Alves de Arruda.



[1] SAAD, Eduardo Gabriel, Comentários ao CDC, 4ª edição, São Paulo: LTr, 1999, p. 34.
[2] Ibd., p. 34.
[3] DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 151.
[4] CARVALHO, Míriam Regina de, Direito do Consumidor Face à Nova Legislação, São Paulo: Editora de Direito, 1997, p.28.
[5] MAZZILLI, Hugo Nigro, A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 15a ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 47.

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