Patricia Mara da Silva. Advogada, professora, pós-graduada
em Direito Administrativo com ênfase em gestão pública. Especialista em
Direitos Difusos e Coletivos. Coordenadora da Associação Brasileira da Cidadania e do
Consumidor do Estado de Mato Grosso do Sul.
É difícil afirmar com exatidão
o momento do nascimento do direito do consumidor. Certamente nasceu com a
sociedade de consumo, porém não é difícil deduzir que o consumo é uma prática
natural, inerente ao ser humano e necessário para a garantia de sua
sobrevivência. Desta forma, basta estar vivo para consumir.
O fato é que a partir do
momento em que o homem começa a estabelecer as primeiras relações comerciais já
se pode verificar uma incipiente preocupação com a proteção ao consumidor.
O Estado, desde tempos
mais remotos, sempre procurou responder às provocações dos consumidores, porém nos
moldes individualistas, de forma limitada, com pouca efetividade para a
coletividade.
Como exemplo desta atuação
do Estado, ainda na Antiguidade, vale mencionar o renomado doutrinador José
Geraldo Brito Filomeno:
Há quem denote (Leizer Lerner apud
Jorge T. M. Rollemberg, 1987) já no antigo “Código de Hamurabi” certas
regras que, ainda que indiretamente, visavam a proteger o consumidor. Assim,
por exemplo, a Lei n° 233 rezava que o arquiteto que viesse a construir uma
casa cujas paredes se revelassem deficientes teria a obrigação de
reconstruí-las ou consolidá-las às suas próprias expensas [...].
Na Índia, no século XIII a.C, o sagrado
código de Manu previa multa e punição, além de ressarcimento de danos, àqueles
que adulterassem gêneros. [...].[1]
Na busca de se estabelecer
um sistema lógico para construção desta síntese, fez-se a opção por relatar
brevemente os modos de produção do mundo ocidental porque foi entre os
ocidentais que se verificou o interesse pelos estudos econômicos, além disso, o
Brasil é um país ocidental.
Os povos orientais, por
conta de uma filosofia que defende a busca da felicidade desprendida de
conquistas materiais, sempre tiveram uma atitude negativa com relação à riqueza.
Sobre a visão do homem oriental, ensina a doutrinadora Ingrid Hahme Rima:
Entre os povos mais antigos, uma atitude
negativa em relação à riqueza talvez seja mais claramente evidenciada no
pensamento dos hindus e dos chineses, embora esta seja uma característica do
pensamento oriental em geral. A filosofia oriental considera que a felicidade é
conseguida através de um estado da mente em que as necessidades materiais se
tornam cada vez menos importantes. Aceita a pobreza com passividade fatalista e
considera a riqueza com relativa indiferença. A renúncia material da filosofia
oriental e sua rejeição ao valor do homem como indivíduo, fazem com que essa
filosofia seja incoerente com o progresso e o desenvolvimento do pensamento
econômico.[2]
Adentrando ao estudo dos
modos de produção convém destacar que na época em que os homens eram nômades
prevalecia o modo de produção primitivo, período em que o homem não produzia.
Segundo as palavras do professor Pércio dos Santos:
Inicialmente, os humanos viviam em tribos
nômades e dependiam exclusivamente dos recursos da região em que a tribo se
encontrava. Sobreviviam graças à coleta e ao extrativismo: caçavam animais para
se alimentar e para usar as peles como roupas, pescavam e colhiam frutos
silvestres. Não dominavam a natureza. Passavam provações quando acontecia
alguma alteração climática brusca e a caça e pesca e os frutos silvestres
rareavam.[3]
Durante aquele modo de
produção, que foi a primeira forma de organização do homem, não havia ainda a
ideia de propriedade, tudo era de todos, não havia sequer Estado. Ora, a
propriedade era coletiva, portanto, não se falava em relações comerciais e muito
menos em proteção ao consumidor naquele período.
O modo de produção
primitivo foi superado pelo modo de produção escravista, período em que o Estado
e a ideia de propriedade privada estavam bem delineados, prevalecendo a figura
do proprietário de terras, de escravos (força de trabalho), dos meios de produção
e do produto do trabalho. Percebe-se nesta fase que as relações comerciais não eram
regra.
Com a decadência do
Império Romano e a consequente desestabilização social instalou-se no Ocidente o
modo de produção feudal, aonde predominou a relação servil, ou seja, o senhor
feudal era o proprietário da terra e exercia forte domínio sobre o servo.
Frisa-se que não preponderava o escravismo neste período. O senhor feudal
representava a descentralização do poder, ou seja, o eixo do poder não estava na
cidade, mas sim no campo.
Nestes três modos de
produção (primitivo, escravista e feudal) não houve prevalência de relações
comerciais e, as existentes nos dois últimos modos de produção não preponderaram
nestes momentos históricos, pois a
princípio as relações de consumo se exteriorizavam através de negócios
interpessoais.
A paz interna, o
desenvolvimento das forças produtivas e as profundas transformações na
organização do trabalho que deram lugar ao surgimento do modo de produção
capitalista. A partir deste modo de produção que se consegue identificar o
direito do consumidor, pois as relações humanas se tornaram complexas, o homem
começou a se relacionar de forma mais intensa e deixar de somente produzir
alimentos para consumo próprio e trocar produtos para comercializar bens de
forma intensiva.
Assim, é razoável situar
neste momento histórico as bases do direito do consumidor, pois a partir deste
contexto é que se pode identificar precisamente o fornecedor, o consumidor, o
produto e o serviço.
Importante destacar que
não se trata de situar no início do modo de produção capitalista o surgimento
do direito do consumidor, mas sim de situar nas origens do capitalismo a clara
percepção da atuação dos atores da relação de consumo (fornecedor e
consumidor).
A ascensão do modo de
produção capitalista na Europa trouxe como consequências a urbanização, o
surgimento da classe dos trabalhadores assalariados, a industrialização e, consequentemente,
o mercado de consumo. Vale ressaltar também como características deste modo econômico
a propriedade dos meios de produção, a busca pelo lucro através dos elementos
liberdade, propriedade privada e o trabalho assalariado.
Apesar das evoluções
trazidas pelo capitalismo, deve-se registrar que este modo de produção
apresenta algumas distorções. A principal delas, ocasionada talvez pelo excesso
de liberdade. Neste aspecto pontua o ilustre professor Argemiro Jacob Brum:
O capitalismo, ao pregar a não-intervenção do
Estado na economia e implantar a livre concorrência, elevou as virtudes do
livre mercado ao grau absoluto. E, com isso, estabeleceu na economia, e também
na sociedade, a lei do mais forte. A absolutização do livre mercado não leva ao
paraíso; ao contrário, transforma o mercado numa arena implacável: vencem os
mais fortes. Os aspectos de justiça social acabam sendo sacrificados em nome da
eficiência produtiva e da eficácia do lucro. Levam vantagem os que produzem
mais e melhor a menores custos; outros são eliminados do processo. A obsessão
pelo lucro máximo provoca a concentração da propriedade, da riqueza e da renda.
Deixado livremente aberto o caminho, instala-se a exploração dos trabalhadores,
para reduzir custos e triunfar na concorrência.[4]
Por esta análise histórica
pode-se identificar que a preocupação com a tutela do consumidor não teve como
ponto de partida o Estado, pois este como se viu não interveio inicialmente do
mercado, admitindo, equivocadamente, que as regras do próprio mercado beneficiassem
a sociedade.
Assim, foi o próprio trabalhador-consumidor
que, incomodado com as péssimas condições de trabalho e com a pouca qualidade dos
produtos e serviços, desencadeou um processo de organização de pessoas na
intenção de pressionar os empresários da época a respeitar o
trabalhador-consumidor.
Com a Revolução Industrial,
com a produção em série e consequente desenvolvimento de uma classe
trabalhadora assalariada, o ocidente assistiu o surgimento das primeiras
entidades de defesa do consumidor, organizações que estavam ligadas
necessariamente aos movimentos de trabalhadores.
No Brasil, onde o
conquistador português chega em 1500, pode-se perceber que até o final do século
XVIII prevaleceu o modelo de colônia de exploração, ou seja, a preponderância do
modo de produção escravista, tardiamente instalado por estas terras.
No século XX é que se pode
falar em sociedade de consumo no Brasil. O doutrinador Marcelo Gomes Sodré
cuidou de registrar algumas ideias conceituais sobre sociedade de consumo:
[...] Mas o que é uma sociedade de consumo?
Respondendo muito genericamente, e sem a precisão necessária, chamamos de
consumo aquela na qual, tendo fundamento em relações econômicas capitalistas,
estão presentes, pelo menos, cinco externalidades: (i) produção em série de
produtos, (ii) distribuição em massa de produtos e serviços, (iii) publicidade
em grande escala no oferecimento dos mesmos, (iv) contratação de produtos e
serviços via contrato de adesão e (v) oferecimento generalizado de crédito
direto ao consumidor. Com certeza é somente após a Segunda Guerra Mundial que
estes elementos estão plenamente presentes no Brasil.[5]
A realidade econômica do
Brasil até a década de 1930 é de economia direcionada para a produção agrícola
com destaque para o café, com a utilização da mão-de-obra escrava e foi com o
processo de superação desta maneira de produzir, que teve fortes influências
externas, bem como a vinda de imigrantes para o Brasil, que se formou uma
classe de trabalhadores assalariados e consequentemente uma massa de
consumidores.
Após a segunda guerra
mundial, as multinacionais de diversos setores, como exemplo veículos e bebidas
chegaram ao Brasil que nesta época, principalmente durante o governo do
presidente Juscelino Kubitschek, já estava mais concatenado com as
transformações mundiais. Apesar do dinamismo do governo de Juscelino, no final
de seu governo o povo brasileiro sentia os efeitos de uma considerável
inflação.
Sem fazer comentários
sobre o curto governo do presidente Jânio Quadros, um ponto crucial na história
política brasileira deste período foi o projeto político do então Presidente
João Goulart que, dentre várias metas, previa a limitação das percentagens de
dividendos que as empresas estrangeiras poderiam enviar para seus países de
origem, bem como a expropriação de terras. Estas e outras metas do programa de
governo de Goulart desagradaram alguns setores da sociedade brasileira e culminaram
na tomada do poder pelos militares em 1964.
Durante a conhecida
Ditadura Militar, enquanto a liberdade do povo era subtraída, o governo foi
construindo fortes laços internacionais, estimulando a entrada de capital
estrangeiro, reduzindo gastos públicos e propagando perante o povo uma visão
otimista de desenvolvimento do Brasil rumo aos países emergentes.
Nesta época muitos
supermercados e shopping centers
foram criados no Brasil, sendo tal período identificado como Milagre Brasileiro.
Sobre a postura do governo perante o mercado nesta época, que não era
libertária, relata o historiador Boris Fausto:
[...] A política de Delfim se destinava
a promover o que se chamou de desenvolvimento capitalista associado. Seria
engano pensar que essa política aplicava uma receita liberal, deixando ‘a mão
invisível do mercado’ a tarefa de promover o desenvolvimento. Pelo contrário, o
Estado intervinha em uma extensa área, indexando salários, concedendo créditos,
isenções de tributos aos exportadores etc. Muitos setores da grande indústria,
dos serviços e da agricultura beneficiaram-se largamente da ação do Estado
naqueles anos.[6]
Na década de 1980, período
de alto desemprego, com o aumento do custo de vida e com a redução dos
investimentos públicos desencadeou-se o fenômeno da redemocratização (fim da
ditadura), que teve como auge o movimento Diretas Já, ocorrido durante o governo
do último presidente militar João Batista Figueiredo.
Apesar da primeira eleição
pós-ditadura no Brasil ter sido indireta, as bases da democracia foram lançadas
neste período com o saudoso presidente Tancredo Neves que apesar de eleito
morreu antes de assumir a presidência.
Foi no governo José Sarney
que a defesa do consumidor ganhou pela primeira vez as ruas, pois no esforço de
combater a inflação este governo lançou o plano cruzado. Isto ocorreu em 1986,
ocasião em que o então presidente conclamava os brasileiros e brasileiras para
denunciarem a remarcação de preços. Os consumidores mais motivados chamavam a
imprensa para noticiar os supermercados que desobedeciam ao tabelamento de
preços imposto pelo governo. Nesta época muitos consumidores se autodenominavam
fiscais do Sarney.
Estas mobilizações
destacaram a importância de uma política de defesa do consumidor no âmbito
federal, estimulando na ocasião a criação do Conselho Nacional de Defesa do
Consumidor.
Após toda esta transição, em
1988 as bases da construção de um Estado democrático são edificadas com a
promulgação da Constituição Federal em cinco de outubro de 1988. Esta carta magna ficou conhecida como
constituição cidadã e entre os avanços concebidos está a determinação direta para
que o próprio Estado promova a defesa do consumidor (art.5º inciso XXXII[7]).
De fato um importantíssimo avanço no campo dos direitos sociais.
Já sob a égide da
Constituição Federal de 1988, no final do governo José Sarney o país convivia
com o desemprego crônico, com a alta inflação, com uma absurda e diária
remarcação de preços de produtos devido ao desgaste do plano cruzado, com o desaparecimento
de produtos dos mercados e com o boicote de produtores e empresários.
Neste cenário é que foi
eleito o primeiro presidente pela via direta após a ditadura, Fernando Collor
de Mello, no início de 1990. Neste período muitas empresas estatais foram
privatizadas (Plano Nacional de Desestatização) e o mercado brasileiro foi
aberto aos produtos internacionais. O governo Collor também foi marcado por
planos econômicos fracassados como Collor I e II e por escândalos e acusações
que culminaram com seu afastamento do poder após um processo de impeachment pelo legislativo.
Com tudo isso, a mesma
política que gerou uma febre pelo consumo, em um segundo momento, propagou uma grave
crise de desemprego.
Em 1994, já no governo
Itamar Franco (vice-presidente do governo Collor), em reação à crise instalada,
foi colocado em ação o plano real que tinha como meta o combate à inflação. Já
no governo de Fernando Henrique Cardoso, autor do Plano Real quando Ministro da
Fazenda do governo Itamar Franco, a política do Plano Real se estruturou e o
processo de abertura do Brasil ao mercado internacional continuou de forma
acentuada, principalmente com relação à privatização dos serviços públicos, citando-se
como exemplo o setor de telefonia.
Como reflexo desta opção
política o Estado foi deixando de ser o realizador dos serviços públicos para
regulá-los. Neste contexto é que surgem várias agências reguladoras (autarquias
especiais) com o dever legal de desempenhar o papel de guardiões do interesse
público nos contratos administrativos de concessão assinados com grupos
privados de investidores, sendo a maioria corporações internacionais.
Em 2003, no governo do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva que trilhando os caminhos traçados por seus
antecessores alcançou o tão sonhado controle inflacionário e os níveis de
emprego se elevaram.
Apesar dos avanços, na
metade do segundo semestre de 2008, uma crise econômica de altíssimas
proporções atingiu os Estados Unidos da América e está irradiando por todo o
mundo.
Agora, no governo Dilma,
vivemos tempos de maior estruturação política da defesa do consumidor com a
criação da Secretaria Nacional do Consumidor, e de inclusão de toda uma classe
social no mercado de consumo, acompanhada de um não controlado e perigoso estímulo
ao consumo.
No presente ano de 2013 o tema “inflação”
voltou a marcar presença no noticiário juntamente com os altos índices de
endividamento dos consumidores brasileiros, fica a incógnita quanto aos efeitos
desta crise para o mercado brasileiro, cujo impacto aos trabalhadores e
consumidores dependerá do nível estrutural da economia do Brasil.
Notas
[1] FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. p. 22 e 23.
2 RIMA, Ingrid
Hahne. História do Pensamento Econômico.
p. 28.
3 OLIVEIRA,
Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia.
São Paulo. p. 105.
4 BRUM. Argemiro
Jacob. Desenvolvimento Econômico
Brasileiro. p. 32.
5 SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. p. 25.
6 FAUSTO,
Boris. História do Brasil. p.486
Referências
BRUM.
Argemiro Jacob. Desenvolvimento Econômico
Brasileiro. 19ª ed. Ijuí-RS: Editora Unijuí, 1998.
FAUSTO,
Boris. História do Brasil. 8ª ed. São
Paulo: Edusp, 2000.
FILOMENO,
José Geraldo Brito. A curadoria de Proteção ao Consumidor. Edições APMP –
Associação Paulista do Ministério Público. Série – Cadernos Informativos. São
Paulo, 1987.
______.
José Geraldo Brito. Manual de Direitos do
Consumidor. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1999.
OLIVEIRA,
Pérsio Santos de, Introdução à Sociologia.
São Paulo. 2002.
RIMA,
Ingrid Hahne, História do Pensamento
Econômico. 1ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 1977.
SIDOU,
J. M. Othon. Proteção ao consumidor.
1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
SILVA,
DE PLÁCIDO E. Vocabulário Jurídico.
25ª edição, Rio de Janeiro: Editora Forense. 2004.
[1] FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direitos do Consumidor. p. 22 e 23.
[2] RIMA,
Ingrid Hahne. História do Pensamento
Econômico. p. 28.
[3]
OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à
Sociologia. São Paulo. p. 105.
[4] BRUM. Argemiro
Jacob. Desenvolvimento Econômico
Brasileiro. p. 32.
[5] SODRÉ, Marcelo Gomes. Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. p. 25.
[6] FAUSTO,
Boris. História do Brasil. p.486
[7] Art. 5°
[...]
XXXII - o Estado
promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
Nenhum comentário:
Postar um comentário